A ultima cronica
A caminho de casa, entro num botequim para tomar café. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado. Eu pretendia recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, que a faz mais digna de ser vivida. Estou sem assunto. Lanço um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim, um casal de pretos acaba de sentar-se. A compostura da humildade deixa-se acentuar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas ou correr os olhos ao redor Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom e aponta um pedaço de bolo sob uma redoma de vidro. A mãe limita-se a ficar observando. A meu lado, o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro – apenas uma fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começam a comer? Vejo que os três –pai, mãe e filha –obedecem, em torno à mesa, a um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira alguma coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos e espera. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia de bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo na mesa e sopra as velas. Imediatamente põe-se a bater palmas, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos:” Parabéns a você...” Depois, a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha