A Individualização da Criança
Jacques Gélis
UM CORPO "PRÓPRIO", UM CORPO "DOS OUTROS"
Durante séculos, e apesar dos esforços da Igreja para aboli-la, predominou na
Europa ocidental o que podemos chamar de consciência "naturalista" da vida e da passagem do tempo. Numa sociedade que até o século XIX continuou sendo basicamente rural a terra-mãe estava na origem de toda forma de vida: era um viveiro inesgotável que assegurava a renovação das espécies e particularmente da espécie humana. Ano após ano a natureza representava a mesma peça; as estações se sucediam sem cessar e o mundo seguia esse movimento sem fim. Nesse universo em constante renovação nada era mais grave que a esterilidade do casal, pois interrompia o ciclo e rompia a solidariedade da linhagem. Cada membro da família dependia dos outros; sem estes não era nada. Os adultos em idade de procriar estabeleciam o elo entre passado e futuro, entre uma humanidade que se fora e uma que estava por vir. Romper a corrente era uma responsabilidade absurda. E porque trazia a criança no ventre, dava-a à luz, alimentava-a, a mulher estava investida de um papel fundamental: era a depositária da família e da espécie. Donde os ritos de fertilidade aos quais se submetia nos "santuários da natureza", junto a pedras da fecundidade, a fontes e árvores fecundantes, como se a semente da criança estivesse na natureza, em certos lugares privilegiados. Cada indivíduo descrevia um arco de vida, mais ou menos longo, segundo a duração de sua existência; saía da terra através da concepção e a ela voltava através da morte. Sob a terra estava a morada dos mortos, a reserva das almas à espera de uma reencarnação, essas almas dos ancestrais que "renderam o espírito" e
[pág. 305]
um dia renasceriam num de seus netos. Aliás, não perdurou por muito tempo o hábito de dar às crianças o nome dos avós como que para melhor assegurar a continuidade da família?1 Por trás dessas crenças e desses comportamentos revela-se a estrutura circular de