Textos
Recordações do Escrivão Isaías Caminha
Lima Barreto
I
A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar, agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na significação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!... O espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento. Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las constituíam, não só uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um titulo para o superior respeito dos homens e para a superior consideração de toda a gente. Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados,