Poemas encontrados de Cecília Meireles
Motivo
Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias no vento.
Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Canção da tarde no campo
Caminho do campo verde estrada depois de estrada.
Cerca de flores, palmeiras, serra azul, água calada.
Eu ando sozinha no meio do vale.
Mas a tarde é minha.
Meus pés vão pisando a terra
Que é a imagem da minha vida: tão vazia, mas tão bela, tão certa, mas tão perdida!
Eu ando sozinha por cima de pedras.
Mas a tarde é minha.
Os meus passos no caminho são como os passos da lua; vou chegando, vai fugindo, minha alma é a sombra da tua.
Eu ando sozinha por dentro de bosques.
Mas a fonte é minha.
De tanto olhar para longe, não vejo o que passa perto, meu peito é puro deserto.
Subo monte, desço monte.
Eu ando sozinha ao longo da noite.
Mas a estrela é minha.
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha