Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio
OS PRONOMES COSMOLÓGICOS
E O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO
Eduardo Viveiros de Castro
El ser humano se ve a sí mismo como tal. La Luna, la serpiente, el jaguar y la madre de la viruela lo ven, sin embargo, como un tapir o un pecarí, que ellos matan (Baer 1994:224).
Le point de vue est dans le corps, dit Leibniz (Deleuze 1988:16).
Introdução
O tema deste ensaio é aquele aspecto do pensamento ameríndio que manifesta sua “qualidade perspectiva” (Århem 1993): trata-se da concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e nãohumanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos1. Os pressupostos e conseqüências dessa idéia são irredutíveis (como mostrou Lima
1995:425-438) ao nosso conceito corrente de relativismo, que à primeira vista parecem evocar. Eles se dispõem, a bem dizer, de modo perfeitamente ortogonal à oposição entre relativismo e universalismo. Tal resistência do perspectivismo ameríndio aos termos de nossos debates epistemológicos põe sob suspeita a robustez e a conseqüente transportabilidade das partições cosmológicas que os alimentam. Em particular, como muitos antropólogos já concluíram (embora por outros motivos), a distinção clássica entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa.
Tal crítica, no caso presente, impõe a dissociação e redistribuição dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradicionalmente se opõem sob os rótulos de “Natureza” e “Cultura”: universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e insti-
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tuído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos. Esse reembaralhamento etnograficamente