Relativo
O NATIVO RELATIVO
Eduardo Viveiros de Castro
O ser humano, tal como o imaginamos, não existe.
Nelson Rodrigues
As páginas a seguir foram adaptadas do arrazoado introdutório a um livro em preparação, onde desenvolvo análises etnográficas anteriormente esboçadas. A principal delas foi um artigo publicado em Mana, “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio” (Viveiros de Castro
1996), cujos pressupostos metateóricos, digamos assim, são agora explicitados. Embora o presente texto possa ser lido sem nenhuma familiaridade prévia com o artigo de 1996, o leitor deve ter em mente que as referências a noções como ‘perspectiva’ e ‘ponto de vista’, bem como à idéia de um ‘pensamento indígena’, remetem àquele trabalho.
As regras do jogo
O ‘antropólogo’ é alguém que discorre sobre o discurso de um ‘nativo’.
O nativo não precisa ser especialmente selvagem, ou tradicionalista, tampouco natural do lugar onde o antropólogo o encontra; o antropólogo não carece ser excessivamente civilizado, ou modernista, sequer estrangeiro ao povo sobre o qual discorre. Os discursos, o do antropólogo e sobretudo o do nativo, não são forçosamente textos: são quaisquer práticas de sentido1. O essencial é que o discurso do antropólogo (o ‘observador’) estabeleça uma certa relação com o discurso do nativo (o ‘observado’). Essa relação é uma relação de sentido, ou, como se diz quando o primeiro discurso pretende à Ciência, uma relação de conhecimento.
Mas o conhecimento antropológico é imediatamente uma relação social, pois é o efeito das relações que constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o sujeito que ele conhece, e a causa de uma transforma-
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O NATIVO RELATIVO
ção (toda relação é uma transformação) na constituição relacional de ambos2. Essa (meta)relação não é de identidade: o antropólogo sempre diz, e portanto faz, outra coisa que o nativo, mesmo que pretenda não fazer mais que redizer ‘textualmente’ o discurso