Os maias
Estatuto do(s) Narrador(es) em Memorial do Convento
Observemos o seguinte excerto: “São pensamentos confusos que isto diriam se pudessem ser postos por ordem, aparados de excrescências, nem vale a pena perguntar, Em que estás a pensar, Sete-Sóis, porque ele responderia, julgando dizer a verdade, Em nada, e contudo já pensou tudo isto.” Nesta passagem, verifica-se que o narrador é, sem dúvida, um narrador não participante – heterodiegético – e omnisciente, que conhece os pensamentos da personagem e que sabe inclusive a resposta que esta lhe daria se a interrogasse num diálogo imaginado. O mesmo não acontecerá em: “Já lá vai pelo mar fora o Padre Bartolomeu Lourenço, e nós que iremos fazer agora, sem a próxima esperança do céu, pois vamos às touradas que é bem bom divertimento”. Neste “e nós que iremos fazer”, “pois vamos às touradas”, o pronome pessoal de 1.ª pessoa (“nós”) e as formas verbais (“iremos”, “vamos”) induzem um narrador misturado com a multidão, ou seja, um narrador que também é personagem – narrador homodiegético – e que, perdendo, por instantes, a sua faculdade omnisciente, a mais comum em toda a narração, vai observando objectivamente o ambiente que o cerca, transformando-se num narrador observador: “A praça toda está rodeada de mastros com bandeirinhas no alto e cobertos de volantes até ao chão que adejam com a brisa e à entrada do curro armou-se um pórtico de madeira, pintada como se fosse de mármore branco”. É possível também ver-se naquele “nós” a presença do narratário, convidado a seguir o narrador até às touradas, mas, dado o contexto, parece mais verosímil a 1.ª leitura. Já na passagem “João Elvas só vê cavalos, gente e viaturas, não sabe quem está dentro ou quem vai fora, mas a nós não nos custa nada imaginar que ao lado dele se foi sentar um fidalgo caridoso e amigo de bem-fazer, que os há, e como esse fidalgo é daqueles que tudo sabem de cortes e cargos, ouçamo-lo com atenção”, não parece haver