Narradores de javé
Maria Aparecida Bergamaschi
Começo minha fala a partir do que considero desencadeador do enredo do filme de Eliane Caffé: o prazer de “contar causos” para passar o tempo. Penso que o filme é uma homenagem aos contadores de histórias, aos contadores de causos. Se ocorridos ou inventados não importa, o que quero destacar é a sedução que exercem. O passageiro que perde o horário da embarcação ganha o abrigo (o quartinho dos fundos), mas, principalmente, ganha o entretenimento, a história do Vale de Javé narrada como se acontecida. Se Homero é evocado no filme para comparação com Antônio Biá é porque, com igual importância, podemos evocar os contadores dos contos de uma tradição brasileira, ameríndia e afro-descendente.
Também gostaria de destacar outro aspecto forte que o filme suscita e que remete à história do Brasil: o acesso à terra, o direito ancestral dos povos americanos, direito que é continuamente usurpado por outra forma de relação com a terra introduzida nesse continente pelos europeus desde os primórdios da colonização. Desde então ocorrem contínuas migrações como a mostrada pelo filme e forjam uma legião infinita de sem-terras. A terra, cujos limites eram cantados, porque, como organismo vivo escuta e sente, respondendo aos anseios da vida das pessoas que a cultivam e que nela habitam com reverência. Transformada em propriedade porque entra em cena outra concepção de mundo e outra forma de ocupação: a exploração da terra, o lucro, o bem da maioria em detrimento dos “tantos” que perdem a terra e pedaços de vida (como diz o personagem do filme).
Bem, após essas considerações passo a abordar dois temas que sinto fortes no filme e acredito que foram eles que me mobilizaram para essa conversa: a memória e a oralidade, que os narradores de Javé confrontam com a escrita. O filme mostra a memória dinâmica e não como algo guardado em uma “caixa secreta”, em um baú, como