Melhores poemas
João Cabral de Melo Neto
Poema de Desintoxicação
Em densas noites com medo de tudo: de um anjo que é cego de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
Enlaçam-me os sonhos
No ar sem aves vagando tristonhos.
Eu penso o poema da face sonhada, metade de flor metade apagada.
O poema inquieta o papel e a sala.
Ante a face sonhada o vazio se cala.
Ó face sonhada de um silêncio de lua, na noite da lâmpada pressiono a tua.
Ó nascidas manhãs que uma fada vai rindo, sou o vulto longínquo de um homem dormindo.”
I. Paisagem do Capibaribe
A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada.
O rio ora lembrava a língua mansa de um cão, ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão.
Aquele rio era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água.
Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem.
Sabia da lama como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores pobres e negras como negros.
Abre-se numa flora suja e mais mendiga como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro.
Liso como o ventre de uma cadela fecunda, o rio cresce sem nunca explodir.
Tem, o rio, um parto fluente e invertebrado como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver
(como ferve o pão que fermenta).
Em silêncio, o rio carrega sua fecundidade pobre, grávido de terra negra.
Em silêncio se dá: em capas de terra negra, em botinas ou luvas de terra negra para o pé ou a mão que mergulha.
Como às vezes passa com os cães, parecia o rio estagnar-se.
Suas