FOUCAULT Michel
A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DA DOENÇA MENTAL
Foi numa época relativamente recente que o Ocidente concedeu a loucura um status de doença mental.
Afirmou-se, afirmou-se até demais que o louco era considerado até o advento de uma medicina positiva como um "possuído". E todas as histórias da psiquiatria até então quiseram mostrar no louco da Idade Média e do
Renascimento um doente ignorado, preso no interior da rede rigorosa de significações religiosas e mágicas. Assim, teria sido necessário esperar a objetividade de um olhar médico sereno e finalmente científico para descobrir a deterioração da natureza lá onde se decifravam
apenas
perversões sobrenaturai s. Interpretação que repousa num erro de fato: que os loucos eram considerados possuídos; num preconceito inexato: que as pessoas definidas como possuídas eram doentes mentais; finalmente, num erro de raciocínio: deduz-se que se os possuídos eram na verdade loucos, os loucos eram tratados realmente como possuídos. De fato, o complexo problema da possessão não releva diretamente de uma história da loucura, mas de uma história das idéias religiosas. Por duas vezes, antes do século
XIX, a medicina interferiu no problema da possessão: uma primeira vez de
J. Weyer a Duncan (de 1560 a 1640), e isto a pedido dos Parlamentos, dos govêrnos ou mesmo da hi erarquia católica, contra certas ordens monásticas que prosseguiam as práticas da Inquisição; os médicos foram, então, encarregados de mostrar que todos os pactos e ritos diabólicos podiam ser explicados pelos poderes de uma imaginação desregrada; uma segunda vez, entre 1680 e 1740, a pedi do de toda a Igreja católica e do governo contra a explosão de misticismo protestante e jansenista, desencadeada pelas perseguições do final do reinado de Luis XIV; os médicos foram então convocados pelas autoridades eclesiásticas para mostrar que todos os fenômenos do êxtase, da inspiração, do profetismo, da possessão pelo
Espírito-Santo eram devidos somente (no caso dos