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Porque esqueci quem fui quando criança? Porque deslembra quem então era eu? Porque não há nenhuma semelhança Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui? Houve em mim várias almas sucessivas Ou sou um só inconsciente ser?
Reflexão:
Trata-se de um dos temas fundamentais da obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas que também é partilhado pelo seu heterónimo Álvaro de Campos.
Para Fernando Pessoa, a sua infância é o passado irremediavelmente perdido, o tempo longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não tinha iniciado a procura de si mesmo, e por isso, ainda não se tinha fragmentado. Em muitos poemas, o poeta exprime a memória dessa infância provocada por um qualquer estímulo – “velha música”, um simples som (“Quando as crianças brincavam / E eu as oiço brincar), uma imagem ou uma palavra – para concluir amargamente que o rosto presente, não há coincidência entre o “eu – outrora” e o “eu – agora”.
Em Fernando Pessoa, a passagem da infância a idade adulta não é um processo de rutura, de corte, de morte: “A criança que fui vive ou morreu?”; “Porque não há semelhança / Entre quem sou e fui?”. Todo o poema “Porque esqueci quem fui quando criança?” exprime essa admiração perturbante de se sentir habitado por outro, diferente da criança que foi “sou outro?”.
Desta forma, o passado e o presente opõem-se na poesia de Fernando Pessoa, não se complementam. O passado é infância, alegria, felicidade “inconsciente”; o presente é nostalgia, inquietação, desconhecimento de si mesmo e do futuro: “se quem fui é enigma, / E quem serei visão, / Quem sou ao menos sinta / Isto no meu