Direito
direito ao grito
n.1 | Ruas do Desterro
Um primeiro grito desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascer desencadeia uma vida, se eu gritasse acordaria milhares de seres gritantes que iniciariam pelos telhados um coro de gritos e horror. Se eu gritasse desencadearia a existência – a existência de quê? a existência do mundo.
Há muito tempo não nos sentíamos tão vivos. Nossos quartos e nossas casas não podem mais nos conter. O grito mudo que carregamos no peito aos poucos transforma-se em palavras: de passe livre à democracia. Você escolhe. Sinta-se à vontade contra a Tarifa, Belo Monte, Felícios e Felicianos, Estatutos do Nascituro. As palavras não são propriedade de ninguém. Podemos roubá-las e fazer delas o que bem entender (até mesmo a Justiça, esta palavra amiga de tempos antigos, sequestrada pelo Estado). Cada um, nesta noite, é um mundo. Grito, Liberdade, Educação. A polícia e a imprensa tentam nos identificar e catalogar: não vão conseguir. Somos os negros, os universitários e secundaristas. Somos os gays e lésbicas, os travestis e transsexuais. Somos as histéricas, os ansiosos e os doentes. Somos os índios. Dos Munduruku aos Guarani Kaiowá. Somos o rio Xingu desembocando no sertão do Ribeirão. Somos tudo isso - mas somos muito mais. Não somos todos.
Somos muitos e isso basta.
Nenhum de nós, contudo, nos enganamos. Essas palavras criam laço e delas nos tornamos amigos: mas não há letra que nos baste. Nossos nomes são como objetos de nossa coleção interminável. Todos os objetos que guardamos se inquietam - nenhum deles fica no armário, são combustível para a revolta. Não podem nos calar, nem podem nos satisfazer. Este nome que nos falta nos faz vivos: nos faz invencíveis. Assim, podemos sair às ruas pelos motivos que bem entendermos - e saímos.
Tomamos as ruas porque sair às ruas é preciso, ainda que nada tivéssemos para dizer. Por isso a dança: porque a dança