Dactilografia
Firmo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjecção esta regularidade!
Que sono este ser assim!
Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.
Outrora.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...
Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Dactilografia: técnica de digitar sem olhar para as teclas o mais rápido possivel nas máquinas de escrever antigas
Recursos estilisticos:
v.v.6-7-8: anáfora (repetição de palavra(as) no inicio das frases/versos- “Que”) vv.6-7-8: os versos acabam sempre com ponto de exclamação- expressa raiva, sofrimento ou desespero do sujeito poético vv.9-11: acho que é outra anáfora vv.12-13: anáfora
v.14: verso solto (monóstico) vv.25-26: anáfora vv.27-28: anáfora
Ficha que a minha prof me deu com biografia:
Álvaro de Campos (sensacionista) nasceu em Tavira em 1890.