Ciências Sociais: na ótica do intelectual militante
Florestan Fernandes
"Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extra-escolar que recebi através das duras lições da vida. Para o bem e para o mal — sem invocar-se a questão do ressentimento, que a crítica conservadora lançou contra mim — a minha formação acadêmica superpôs-se a uma formação humana que ela não conseguiu distorcer nem esterilizar. Portanto, ainda que isso pareça pouco ortodoxo e antiintelectualista, afirmo que iniciei a minha aprendizagem sociológica aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade em uma cidade na qual não prevalecia a ordem das bicadas, mas a relação de presa, pela qual o homem se alimentava do homem, do mesmo modo que o tubarão come a sardinha ou o gavião devora os animais de pequeno porte. A criança estava perdida nesse mundo hostil e tinha de voltar-se para dentro de si mesma para procurar nas técnicas do corpo e nos ardis dos fracos os meios de autodefesa para a sobrevivência. Eu não estava sozinho. Havia a minha mãe. Porém a soma de duas fraquezas não compõe uma força. Éramos varridos pela tempestade da vida e o que nos salvou foi o nosso orgulho selvagem, que deitava raízes na concepção agreste do mundo rústico, imperante nas pequenas aldeias do norte de Portugal, onde as pessoas se mediam com o lobo e se defendiam a pau do animal ou de outro ser humano.
Há pouco interesse em descrever a variedade de ocupações a que precisei dedicar-me ou as venturas e desventuras que pontilharam uma infância e uma adolescência tão marcadas pela necessidade de ganhar a vida, de buscar no trabalho — por vezes humilhante e degradante — um instrumento de relação com os outros e de pressão sublimadora. Fazendo o que me via forçado a fazer também era compelido a uma constante busca para vencer uma condição em