Cem anos de perdão
Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou corações , então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava corações.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos , ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertencia os palacetes. “Aquele branco é meu”. “Não, eu já disse que os brancos são meus. “Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa dessas brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem jardinados, estavam plantadas as flores.
Bem, mas isolado no seu canteiro estava um coração, apenas entreaberto cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquele coração altaneiro, que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo do meu coração , eu queria aquele coração para mim,. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obte-lô. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria o coração, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro a vista, ninguém. E nas janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio do coração, havia o meu desejo de possuí-lo como coisa só minha. Eu queria poder pegar nele. Queria cheirá-lo até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua.
Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades em pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o