CARTAS DE AMOR
Moacyr Scliar
Eu era aluno do Júlio de Castilhos e estudava à tarde (as manhãs, naquela época, estavam reservadas às turmas femininas). Um dia cheguei para a aula, coloquei meus livros na carteira e ali estava, bem no fundo, um papel cuidadosamente dobrado. Era uma carta; dirigida não a mim, mas “ao colega da tarde”. E era uma carta de amor. De amor não; de paixão. Paixão fogosa, incontida, transbordante, a carta de uma alma sequiosa de afeto. À qual o jovem escritor não teve a menor dificuldade de responder. Iniciou-se assim uma correspondência que se prolongou pelo ano letivo, não se interrompendo nem com as provas, nem com as férias de julho. À medida que o ano ia chegando a seu fim, os arroubos epistolares iam crescendo. Cheguei à conclusão de que precisava conhecer a minha misteriosa correspondente, aquela “bela da manhã” que me encantava com suas frases. Mas… Seria realmente bela? A julgar pela letra, sim; eu até a imaginava como uma moça esguia, morena, de belos olhos verdes. Contudo, nem mesmo os grandes especialistas em grafologia estão imunes ao erro, e um engano poderia ser trágico. Além disto, eu já tinha uma namorada que não escrevia, mas era igualmente fogosa.
Optei, portanto, pelo mistério, pelo “nunca te vi, sempre te amei”. A minha história de amor continuou somente na fantasia. Que é o melhor lugar para as grandes histórias de amor.
(Scliar, M. Cartas de amor. In: Minha mãe não entende nada. 2ªed. Porto Alegre: L&PM, 1996, p.85-86.)
Vocabulário
Arroubo: arrebatamento, precipitação.
Encantar: enfeitiçar, seduzir.
Esguio: alto e delgado, magro.
Epistolar: relativo a epístola, carta.
Fantasia: imaginação
Fogoso: ardente, caloroso.
Grafologia: análise da personalidade de um indivíduo por meio da sua escrita.
Imune: isento, livre.
Incontido: que não pode ser contido.
Sequioso: desejoso, ávido.