É possível sentir as garras afiadas do sofrimento prenderem-se sorrateiramente nas reentrâncias e é nessa hora que é quase intolerável acreditar que, feito céu escuro, passa. Contudo, mesmo com tudo, passa. Por mais que existam dias que o peito fique gritando que não, que não vai deixar de sofrer, que não tem tempo, resolução ou distância que dê jeito. Que o bichinho do sofrimento virou bicho papão da história dos pequenos e povoa todas as horas do sono. Que não adianta querer ser Clementine e apagar tudo. Justamente nesse instante, toda palavra parece mentira, consolo de amigo, história de gente que acha que sofreu, mas não sofreu. Porque o tal do sofrimento finca as unhas tão profundamente na alma da gente, que a gente, autopiedoso, acredita ser a nossa a maior de todas as dores e crê piamente que nunca ninguém, em qualquer tempo, sob qualquer pretexto, passou perto de sofrer o tanto que a gente. Mas aí, antes de passar, o sofrimento se aquieta. Depois de todo o desespero e medo (de ficar só pra sempre, de virar o coração terra seca, de não conseguir aguentar, de discar o número tantas vezes antes de desistir e desligar, de não conseguir desligar, de colocar a cabeça no travesseiro e não dormir, de tomar banho e não parar de chorar, de não cessar o pranto interno), os passos seguem como o pulsar de coração: no automático. Tudo ao redor parece pequeno, sem graça, descolorido. Perde-se a fome, o sono, o brilho. Até a gente, então, nem parecer mais a gente. E a vida segue assim desgostosa feito comida insossa, doce sem açúcar, café fraco. Talvez, seja essa fase de anestesia, se você já encheu de bom grado a bagagem com alguns bocados de sofrimento e traz dentro de si um desses corações calejados, a que dura mais. Parece aquele filme que o personagem principal vive preso no mesmo dia, só com a diferença que você nem tenta mais mudar a rotina e a sua vida não tem altas aventuras da sessão da tarde. Daí, pode ser que seja brisa leve de novo amor provocando