Boemia
· I ·
Para Sherlock Holmes, ela é sempre a mulher. Raras vezes o ouvi mencioná-la sob qualquer outro nome. A seus olhos, ela eclipsa e domina todo o sexo feminino. Não que ele sentisse por Irene Adler qualquer emoção do gênero do amor. Todas as emoções, e essa em particular, eram detestáveis à sua mente fria, precisa, mas admiravelmente equilibrada. Ele era, na minha opinião, a mais perfeita e observadora máquina de raciocinar que o mundo já viu; como amante, porém, teria metido os pés pelas mãos. Nunca falou das paixões mais ternas senão com certa zombaria e um sorriso de desdém. Esses sentimentos eram admiráveis para o observador — excelentes para revelar os motivos e as ações dos homens. Para o homem de raciocínio treinado, porém, admitir tais interferências em seu temperamento sensível, sutilmente equilibrado, era introduzir um fator de perturbação capaz de abalar todos os seus julgamentos. Areia num instrumento sensível, ou uma rachadura em suas potentes lupas, não causaria mais estorvo que uma emoção forte numa natureza como a sua. Apesar de tudo, para ele só existia uma mulher, e essa mulher era a falecida Irene
Adler, de duvidosa e questionável memória.
7
As Aventuras de Sherlock Holmes
Nos últimos tempos eu pouco vira Holmes. Meu casamento nos afastara. Minha felicidade completa e os interesses domésticos que envolvem o homem que pela primeira vez se vê senhor de sua casa eram suficientes para absorver toda a minha atenção. Enquanto isso, Holmes, que detestava toda forma de sociedade, com sua alma inteiramente boêmia, continuava lá, em nossos aposentos em Baker Street, enterrado entre seus livros antigos, e alternando, semana a semana, a cocaína com a ambição, o torpor da droga com a energia impetuosa de sua personalidade intensa. Continuava, como sempre, profundamente atraído pelo estudo do crime e dedicava suas portentosas faculdades e seus extraordinários poderes de observação a seguir pistas e desvendar mistérios
abandonados