Barra 2003 Scientiae Studia
movimento: mecanicismo e ação divina
A metafísica cartesiana das causas do movimento: mecanicismo e ação divina
Eduardo Salles de Oliveira Barra
resumo
O programa mecanicista apresentado por Descartes nos Princípios da filosofia destina-se a prover explicações dos mecanismos causais do mundo material exclusivamente em termos das qualidades geométricas da matéria e do movimento. Assim compreendida, a matéria não pode conter em si mesma as fontes da sua própria atividade, mobilidade ou diversidade, o que significa dizer que forças ou quaisquer outros princípios ativos não ocupam lugar algum na ontologia mecanicista cartesiana. O artigo procura esclarecer de que modo Descartes pretende que a agência divina possa suprir o lugar das forças banidas do seu universo mecânico.
Palavras-chave ● Mecanicismo. Descartes. Movimento. Força. Causa. Ação divina. Física e metafísica.
1. Ontologia e padrões explicativos mecanicistas
A teoria física apresentada por Descartes nos Princípios da filosofia (1644)1 sempre colocou uma dúvida fundamental para seus intérpretes: qual o lugar destinado às forças ou aos princípios de atividade, responsáveis pelas diversas modificações mecânicas da matéria, na estrutura ontológica do universo físico cartesiano? A origem mais imediata dessa dúvida é bastante óbvia desde o início. Descartes pretendeu não ter admitido em sua explicação dos processos naturais nenhuma entidade que fosse ela mesma suscetível de redução à natureza intrínseca da matéria ou a seus modos ou atributos. Nisso consiste o programa que chamarei aqui de mecanicismo, que ainda incorpora a definição da natureza material como sendo exclusivamente a pura extensão geométrica e a
1 Daqui em diante referido apenas como Princípios. As citações dessa obra serão indicadas pela abreviação ‘Pr’, seguida pelo número da parte em algarismos romanos e pelo número do artigo em algarismos arábicos. Por