Analista
A visão é um sentido superestimado. José Saramago, em sua obra prima Ensaio Sobre a Cegueira, mostra porquê.
Imagine que um dia todos à sua volta ficassem cegos, repentinamente, n’uma epidemia que se alastra desenfreada. Mas não de uma cegueira normal, e sim de uma cegueira branca, como leite.Você, no entanto, não perdeu a visão por alguma razão misteriosa e mantém este fato como um segredo.
Para tentar conter a epidemia, o Governo coloca as pessoas em quarentena, mas a força epidêmica é muito maior e logo o mundo todo acaba cego. Você fingiu-se cego para poder acompanhar alguém que ama muito na quarentena e, sem perceber, está condenado a vivenciar a natureza humana intensamente. Isso porque em situações de catástrofes, a comunhão é posta à prova, a moral também.
Custa caro perceber que a essência do ser humano não é boa. Rousseau estava enganado. E você, que mantém a visão, vive um pesadelo de contornos hobbesianos até concluir o óbvio: as nossas reações às necessidades são implacáveis. Tudo é urgente.
É necessário, então, estabelecer um novo contrato social. E antes que a racionalidade seja retomada, um déspota surge com poder legitimado pela arma que carrega consigo, apoiado por um cego nato. Ora, uma liderança apoiada por indivíduos corrompidos abre espaço para mais corrupção e imoralidade.
O segredo que o mantém vivo forma uma cadeia de dependência. Você assume a obrigação de ajudar os demais e presenciar, como um castigo, a degradação. Claro que em algum momento o fardo se torna insuportável… e você sucumbe à barbárie. Enxergar passou a ser sua penitência.
Neste ponto, a situação hipotética assemelha-se à realidade, onde a barbárie está instalada, ainda que a maioria tenha plena visão. O que nos leva à conclusão: há certas coisas que é melhor não ver.
Mas assim como a cegueira apareceu, repentinamente, ela também desaparece, pela mesma ordem de contágio. O mundo agora é feio, imundo e caótico. E