O livro dos abraços
“A ditadura uruguaia queria que cada um fosse apenas um, que cada um fosse ninguém: nas cadeias e quartéis, e no país inteiro, a comunicação era delito.
Alguns presos passaram mais de dez anos enterrados em calabouços solitários do tamanho de um ataúde, sem escutar outras vozes além do ruído das grades ou dos passos das botas pelos corredores. Fernández Huidobro e Maurício Rosencof, condenados a essa solidão, salvaram-se porque conseguiram conversar, com batidinhas na parede. Assim contavam sonhos e lembranças, amores e desamores; discutiam, se abraçavam, brigavam; compartilhavam certezas e belezas e também dúvidas e culpas e perguntas que não têm resposta.
Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada”
Por muitos anos pensei que tinha direito ao delírio e confesso que delirei. Sem amarras, nau à deriva, as coisas acontecem ao seu redor e você também acontece. A vida vai, “dolce”, suave, felliniana. O pensamento vai junto de acordo com seu tempo e o tempo passa de maneira tão descontínua que nem mesmo as lembranças nos pertencem, pois sequer temos o mesmo rosto em tempos diferentes. Depois de cem mil anos de evolução nossa condição se resume a um anacrônico código genético, tão impessoal quanto contestável.
Se eu fosse cego, tocaria em tudo para guiar meu corpo. Se fosse surdo, olharia mais profundamente. Não sou nenhum dos dois e, no entanto, deixei de tocar, de olhar e de ouvir meus semelhantes. A cada ano que passa mais distante me sinto dos demais.
Eduardo Galeano, autor do texto entre aspas, é um dissidente que abraçou o humanismo esquerdista como bandeira, filosófica e panfletária, se é que isso é possível. Mas nada é impossível para o autor de “As veias abertas