Vida cerimonial e luto entre os Javaé
Patrícia de Mendonça Rodrigues2
Resumo: apresento aqui uma etnografia básica da relação contrastiva entre a vida cerimonial e o período de luto entre os Javaé, habitantes da
Ilha do Bananal. Enquanto a primeira caracteriza-se por uma ênfase no controle do corpo/substâncias e das emoções, associando-se a um ideal de pacificação das tensões, o segundo caracteriza-se pelo transbordamento das emoções, associando-se a uma exacerbação dos conflitos. A vida cerimonial é controlada pela Casa dos Homens e centrada no espaço sagrado masculino, enquanto o luto é comandado pelas mulheres de idade e centrado no espaço profano feminino. Os homens são concebidos como sujeitos de corpos e emoções mais contidos, interessados na repetição da tradição, enquanto as mulheres são vistas como sujeitos de corpos e emoções menos controlados, associados à improvisação e à originalidade.
A vida cerimonial regular, baseada em um objetivo masculino de manutenção da ordem, é subvertida pela morte e os conseqüentes choros rituais femininos, associados à criação do novo e às acusações de feitiçaria explícitas que provocam o caos momentâneo.
Palavras-chave: Javaé. Gênero. Luto. Ritual.
Os Javaé habitam imemorialmente a Ilha do Bananal (TO), no rio Araguaia, e falam um dialeto da língua Karajá, pertencente ao tronco lingüístico Macro-Jê (Fortune, 1977; Maia, 1986; Ribeiro,
2001/2002). Segundo a memória oral nativa, a cisão mítica primordial estabeleceu uma diferença entre os humanos que continuaram vivendo no Fundo das Águas (Berahatxi), com seus corpos mágicos e imortais, e os humanos sociais que ascenderam ao nível terrestre.
Os primeiros vivem mascarados, são conhecidos como “aruanãs”
(irasò) e se reproduzem magicamente, sem nenhum tipo de contato
Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Brasília, v.3, n.1/2, p.107-131, jul./dez. 2006
PATRÍCIA DE MENDONÇA RODRIGUES
físico entre si. Os aruanãs possuem corpos eternos,