ver e traçar
Degas Dança Desenho
Paul Valéry
Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a.
Ou melhor, são duas coisas muito diferentes que vemos. Até mesmo o objeto mais familiar a nossos olhos torna-se completamente diferente se procurarmos desenhá-lo: percebemos que o ignorávamos, que nunca o tínhamos visto realmente. O olho até então servira apenas de intermediário. Ele nos fazia falar, pensar: guiava nossos passos, nossos movimentos comuns; despertava algumas vezes nossos sentimentos. Até nos arrebatava, mas sempre por efeitos, consequências ou ressonâncias de sua visão, substituindo-a, e portanto abolindo-a no próprio fato de desfrutar dela.
Mas o desenho de observação de um objeto confere ao olho certo comando alimentado por nossa vontade. Neste caso, deve-se querer para ver e essa visão deliberada tem o desenho como fim e como meio simultaneamente.
Não posso tornar precisa minha percepção de uma coisa sem desenhá-la virtualmente, e não posso desenhar essa coisa sem uma atenção voluntária que transforme de forma notável o que antes eu acreditara perceber e conhecer bem. Descubro que não conhecia o que conhecia: o nariz de minha melhor amiga...
(Há alguma analogia entre isso e o que ocorre quando queremos especificar nosso pensamento com uma expressão mais deliberada. Não é mais o mesmo pensamento.)
A vontade continuada é essencial ao desenho, pois o desenho exige a colaboração de aparelhos independentes que estão sempre pedindo para resgatar os automatismos que lhe são próprios. O olho quer vagar; a mão arredondar, tomar a tangente. Para garantir a liberdade do desenho, pela qual poderá realizar-se a vontade do desenhista, é preciso se desvencilhar das liberdades locais. É uma questão de governo... Para deixar a mão livre no sentido do olho, é preciso suprimir sua liberdade no sentido dos músculos; em particular, amaciá-la para traçar em qualquer direção, o que ela não gosta de fazer. Giotto traçava um círculo