UMA RESENHA DE JJ VEIGA
Scliar, o Cristo e a utopia
21 de setembro de 2010Comments (2)
Construção do Cristo é tema de romance de Moacyr Scliar / Foto de Patrícia Santos, AE
Mas não era só isso, não era só o tamanho descomunal. Era outra coisa. As imagens de Cristo com as quais eu estava familiarizado eram sobretudo imagens de martírio, de sofrimento, como a do crucifixo de minha mãe. Aquela não. Aquela era uma obra art nouveau, uma imagem majestática, de sóbria beleza. O Cristo que eu tinha diante de mim era um Cristo de expressão neutra, impassível. Nada de ‘Meu pai, meu pai, por que me abandonaste?’, e nada de ‘Deixai vir a mim as criancinhas’. Também não era a imagem do Jesus que, gritando ‘A Minha casa é casa de oração, vós a transformastes em covil de ladrões’, expulsara os vendilhões do Templo. Não, aquele Cristo não bradava nada, aquele Cristo não se queixava, não se enfurecia. Aquele Cristo, asséptico e majestoso, era uma absoluta incógnita. Os globos oculares não tinham pupilas, não tinham íris, não tinham cor; pior, não me fitavam, aqueles olhos, o que não impedia que eu me sentisse mirado, trespassado por um olhar que superava os raios X em termos de devassar intimidades; poder enigmático, secreto, misterioso. Olhos insondáveis, olhos de cego que, no entanto, viam tudo, que me acusavam: eu sei quem tu és, comunista pérfido, estás aqui para destruir, não para construir, vade retro, Satanás.
Esquerdista na juventude, Moacyr Scliar decidiu fazer de seu novo romance um elogio da utopia. Eu Vos Abraço, Milhões conta, com seu humor peculiar, por vezes absurdo, a aventura de um jovem comunista gaúcho que, morando no Rio nos anos 1929 e 1930, testemunha a crise econômica e a revolução que entronizou Getúlio Vargas no poder. O fato de o romance estar vindo a público nos 80 anos daRevolução de 1930 – que se completam em outubro – foi uma coincidência fortuita, garante Scliar. Na origem, Eu Vos Abraço, Milhões era um romance centrado menos