Uma leitura de "O Capote"
Joaquim Zenha Rela
Nabókov, um adorador de Gogol, fala do «absurdo» de O Capote no pano de fundo do absurdo geral do mundo, do qual, aliás, provém; diz ainda , com toda a razão, que não pode ler-se O Capote apenas como uma farsa, ou como uma crítica disto ou daquilo: O Capote é um escrito criador para um leitor com talento criador. [FILIPE GUERRA, tradutor de “O Capote”, Assírio & Alvim, 2002, 80 páginas, ISBN: 978-972-37-0650-5]
1. É muito simples a trama de O Capote de Gogol, muito embora o relato esteja ornado com grande soma de pormenores, todos eles muito significativos. Akaki Akakievitch é um funcionário menor de uma das secretarias de Estado, pobre ser obscuro a quem ninguém dá importância e que suporta resignadamente todas as troças de que é alvo no seu trabalho. Um dia ele toma a grande decisão de mandar fazer um capote novo. Ainda na mesa do alfaiate, o capote torna-se o sonho da sua vida, mas na noite em que o estreia ele é-lhe roubado numa rua sombria. Para qualquer outro, o facto seria insignificante; para ele significa uma calamidade. E vem, então, a odisséia do pobre diabo a queixar-se à polícia, sem que lhe dispensem a menor atenção, a reclamar inutilmente o objeto perdido, até que, pela falta dele, vem a morrer e a descer à campa sem qualquer alarde extraordinário. E, assim, como se ela nunca tivesse existido, ficou Peterburgo sem uma criatura protegida e querida por ninguém e interessante para ninguém.
Face a esta factualidade é de admitir que a intenção primeira de Gogol seria denunciar os horrores da burocracia russa, não sendo difícil ver na personagem central de O Capote a imagem do oprimido e toda a narrativa como um requisitório contra a sociedade.
Mas a história não acaba aqui, já que, após a morte de Akaki Akakievitch, a narrativa continua e irá ganhar inesperadamente um final fantástico, como adianta o próprio Gogol. Isto porque de uma hora para a outra se espalhou o rumor de que o espectro de