Texto
Quando encontrar esta carta, há muito terei deixado essa casa. Não é culpa tua, meu velho. Tem sido a melhor pessoa que pode, tampando os ouvidos para o que as paredes agora lhe gritam. Sempre teve alguma noção do que houve em seu teto, e o que manchou teu chão de sangue. Mas nunca quis ouvir os fatos. Eu preciso te apresentar á eles. O espelho me acusa, e toda alvenaria da casa me conta lembranças que eu não suporto mais ouvir.
Andrei contava três anos, quando eu vim a nascer. Sabes mais que eu, que situação financeira da família ainda não havia entrado em total declínio. Isso aconteceu mais tarde, quando eu contava meus seis anos, Andrei nove. Repito que sabes melhor do que eu, dos fatos. Fora um pouco antes dessa idade que minhas crises asmáticas decorrentes, vieram a trazer o diagnóstico de uma doença respiratória rara e grave. Foi esta mesma, que nos anos que se seguiram arrancaram nossa bem aventurada família da classe média. Aos meus seis anos, tu mudou-se para outra cidade. Me sussurrou em certa noite que arrumou um trabalho melhor, e as coisas iriam melhorar. Anos mais tarde vim saber, que também havia separado-se de mamãe. Esta que por sua vez, começara a trabalhar fora. Sobrava-me a mim e Andrei apenas um ao outro. Foi nesta idade tenra de descobertas, que também aprendemos á nos descobri. Ainda lembro da primeira vez que descobrimos um ao outro, no âmago profundo, escuro e intenso da alma. Naufragamos, e depois de muito nadar ancoramos em uma ilha desconhecida, mas que de certo oferecia prazeres tão doces que chamaria de podre. Descobertas feitas acima de pele nua, e lábios ansiosos. Nunca fomos descobertos, sempre ansiosos demais e á guardar segredo tão apodrecido. Eu disse nunca?