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Era uma noite de fevereiro, de névoa cerrada, (276) um céu de carvão pulverizado em brumas molhadas, sem clareira onde lucilasse (277) uma estrela. Não se agitava um galho de árvore nua movida pelo ar, nem ondulava uma erva. Era a serenidade negra e imota das catacumbas. Às vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no chão esponjoso das carvalheiras, a fuga rápida das hardas, dos toirões e das raposas, que se avizinhavam do povoado, a fariscarem as capoeiras. (278). O Joaquim Melro estremecia e punha o dedo no gatilho. O restolhar (279) dum gato bravo, o pio da coruja no campanário distante punham arrepios de medo na espinha daquele homem que ia matar outro: chamá-lo à janela, e vará-lo à traição com uma bala — era o traçado.
— Que raio de escuro! — dizia, esbarrando nos espinheiros perfurantes.
Em noites assim, o universo seria o imenso vácuo precedente ao Fiat genesíaco, se os viandantes não esbarrassem com as árvores e não escorregassem nos silvedos das ribanceiras. O noctívago sente na sua individualidade, nos seus calos e no seu nariz, a doce impressão panteísta das árvores e dos calhaus. Que (280) este globo está muito bem feito. Os transgressores do descanso que Deus estatuiu nas horas tenebrosas, os celerados das aldeias, que larapeiam o presunto do vizinho, ou empunham 0 trabuco homicida, se não temem encontrar as patrulhas cívicas das grandes municipalidades, encontram os troncos hostilmente nodosos das árvores, que são as patrulhas de Deus. Alguns, porém, protegidos pelo Mefisto, a quem venderam a alma pelo preço da consciência eleitoral, ou mais barata, chegam incólumes ao delito, passando, ilesos como o lobo e o javali, por entre os troncos das carvalheiras esmoitadas, (281) hirtas, com os galhos a esbracejarem retorcidos numa agonia patibular.
(A Brasileira de Prazins; edição do Porto, 1882, pp. 313-314).