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Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Podemos imaginar Fernando Pessoa do alto da sua janela, num qualquer dos seus quartos alugados, vendo o rebuliço normal da cidade e sobretudo o pormenor indecifrável das pequenas coisas. Entre elas estaria o pequeno gato a brincar na rua que dava para a sua casa.
Se por um lado a "dor de pensar" é uma coisa que invade a mente de Pessoa e o impede de viver plenamente a vida, não me parece que este poema aborde essa dor, mas antes a maneira como Pessoa observava as coisas fúteis da vida: é nos pormenores ínfimos que a análise filosófica de Pessoa se extrema e encontra os maiores significados. Ao ponto de ele mesmo se exaltar enquanto "investigador solene das coisas fúteis" (Álvaro de Campos, no poema "Passagem das Horas").
Este poema lembra o poema Tabacaria, onde a certo ponto Pessoa move a sua atenção para a rapariga que come chocolates, absorta do resto do mundo. É esta falta de preocupação (o ser "bruto", que aparece por ex. em Ricardo Reis), que espanta Pessoa e o intriga - sendo que também faz nascer nele a inveja.
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama
Invejo a sorte que é tua
Por que nem sorte se chama
Pessoa inveja realmente "a sorte" do gato, que é a sorte de ser inconsciente e puder brincar sem pensar em mais nada - brinca na rua "como se fosse na cama".
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
O gato é "bom servo das leis fatais", ou seja, cumpre o seu destino sem se opor minimamente a ele - cumpre o desejo mais alto de Reis, que é o de sentir o destino como coisa inevitável enquanto se cumpre. O