SOBRE HETEROGENEIDADE DISCURSIVA
Sírio Possenti (Unicamp / CNPq)
Introdução
Uma declaração relativamente recente de Obama, defendendo um programa que espiona telefonemas e servidores de empresas da Internet e outras fontes, ajuda a introduzir a questão da qual quero tratar: “Não dá para ter 100% de segurança. 100% de privacidade e zero de inconveniência”.
Ela apresenta três questões, em relação às quais é possível, em tese, que haja diversas posições. Simplificando um pouco: pode-se defender a segurança total (ou não, conforme certas condições), a privacidade total (ou não, dependendo de certos fatores ou contextos), ou nenhum inconveniente (ou não, isto é, alguns poderiam ser aceitos, a depender das razões apresentadas).
Talvez a fala de Obama possa ser reduzida a um dilema: 100% de privacidade, mesmo que produza resultados graves (ataques terroristas, segundo as teses do governo americano) ou 100% de segurança (mesmo que à custa de bisbilhotices na vida privada dos cidadãos).
Cada uma das posições pode ser defendida com argumentos mais aceitáveis e menos aceitáveis. Às vezes, trata-se de uma ideologia, defendida a qualquer custo, às vezes, de questões concretas – guerras, geralmente, são ocasiões para suspender certos direitos. Uma democracia pode aceitar o programa defendido por Obama? Se este fosse o tema de uma redação, como um aluno encaminharia uma proposta, no final de seu texto, sem agredir direitos humanos? A privacidade e a segurança não são ambos direitos? Uma resposta seria que o Estado deve dar conta de ambas, já que pagamos impostos? Aparentemente, na realidade não tem sido possível defender a ambos. Mais realisticamente: não se encontra quem defenda a ambos. Artigos em jornais e cartas de leitores mostraram claramente as diferentes posições. Cada texto defende uma delas, seja com dados, seja com a repetição de teses, ora humanistas e democráticas, ora sustentando que se pode abrir mão da segurança em nome de certos direitos.