Saudosismo e crítica social em Casa grande & senzala: a articulação de uma política da memória e de uma utopia
Neste artigo, procuro analisar a retórica de Casa grande & senzala fora da moldura dualista na qual a obra costuma ser avaliada. Para isso, demonstro como partes da obra, díspares nos seus princípios constitutivos (por exemplo, trechos memorialistas, análises antropológicas), articulam-se para propor ao leitor de então um pacto da memória, no qual eram relembradas liricamente as experiências do Brasil rural, ao mesmo tempo que eram refutadas por meio de retórica científica os estereótipos racistas produzidos pelo mesmo Brasil rural. De um lado, procura-se aproveitar essa dimensão afetiva da vida privada, enquanto, de outro, descartam-se os preconceitos produzidos por aquele mesmo mundo. Há um decantamento da memória, uma dialética sutil entre lembrança e esquecimento. A análise, portanto, indica que a memória em Casa grande & senzala vai muito além da mera dicção nostálgica, à qual a obra está associada. Finalmente, argumento que a importância de se discutir tal pacto de memória é dupla: pois, ao mesmo tempo que auxilia a compreensão dos elementos formadores do discurso da democracia racial, ajuda a desconstruí-lo e ressignificá-lo.
Podemos dizer que Gilberto Freyre, ao escrever sua obra principal, mantém uma fidelidade a dois sistemas ético-cognitivos diferentes. Por sistemas ético-cognitivos refiro-me a formas integradas de conhecer o mundo e agir nele. Eles poderiam ser distinguidos do seguinte modo: um tem a ver com visão senhorial de mundo, e o outro está relacionado ao lado mais desmistificador de sua obra ou, como diria Darcy Ribeiro, ao olhar mais "perquiridor". Para esclarecer a maneira como tais sistemas funcionam, passemos para a análise de um trecho significativo da "fidelidade senhorial" de Gilberto Freyre. É o início do quarto capítulo de Casa grande & senzala.
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na