Romagem dos Agravados
Gil Vicente, 1533
Esta tragicomédia seguinte é sátira, seu nome é Romagem de Agravados. Foi representada ao muito excelente príncipe e nobre rei dom João, o terceiro em Portugal deste nome, na cidade de Évora, ao parto da muito esclarecida e cristianíssima rainha dona Catarina nossa senhora e nascimento do ilustríssimo infante dom Felipe.
Era do Senhor de 1533.
Interlocutores: Frei Paço, João Mortinheira e Bastião seu filho, Bereniso e Colopêndio fidalgos, Marta do Prado e Branca do Rego regateiras, Cerro Ventoso, Frei Narciso, Aparício Eanes e sua filha Giralda, Domicília e Dorosia freiras, Hilária e Juliana pastoras.
Entra logo Frei Paço com seu hábito e capelo e gorra de veludo e luvas e espada dourada, fazendo meneos de muito doce cortesão, e diz:
Frei Paço
Quem me vir entrar assi
com estes jeitos que faço
cuidará que endoudeci
até que saiba de mi
que sam o padre frei Paço.
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Deo gracias nam me pertence
nem pera sempre nem nada
senam espada dourada
porque muito bem parece
ao Paço trazer espada.
10
Eu sam fino da pessoa
e por se nam duvidar
fiz uma cousa mui boa
leixei crecer a coroa
sem nunca a mandar rapar.
15
E portanto vos não digo
Deo gracias se atentais nisto
nem louvado Jesu Cristo
inda que trago comigo
hábito que é muito disso.
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E sam tam paço em mi
que me posso bem gabar
que envejar mexericar
são meus salmos de Davi
que costumo de rezar.
25
Falo mui doce cortês
grã soma de comprimentos
obras nam nas esperês
senam que vos contentês
com palavrinhas de ventos.
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Sou favor e desfavor
mestre mor dos namorados
engano dos confiados
sou templo do deos de amor
inferno de magoados.
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Porém nam como soía
é já a lei namorada