Putas, Escravos e Garanhões - BOXE - texto
PUTAS, ESCRAVOS E GARANHÕES:
LINGUAGENS DE EXPLORAÇÃO
E DE ACOMODAÇÃO ENTRE
BOXEADORES PROFISSIONAIS*
Loïc Wacquant
O boxe oferece um prisma singular por intermédio do qual é possível chegar a uma compreensão das possibilidades estruturadas, percepções culturais e trajetórias individuais no interior dos bairros pobres e decadentes dos Estados Unidos. A sua natureza como atividade em que o corpo é radicalmente instrumentalizado, as suas ligações com a economia informal das ruas, o recrutamento social e etnorracial de seus praticantes, as motivações e disposições que requer, fazem do boxe a prototípica instituição masculina do gueto. De fato, a história moderna do pugilismo nos
Estados Unidos é inseparável daquela das relações raciais e também das periódicas reconfigurações da fronteira de cor na área urbana desse país
(Sammons 1988). O boxe é também um terreno particularmente propício para dissecar a experiência vivida e a construção simbólica da exploração na parte mais baixa da estrutura de classe e de casta.
O presente artigo baseia-se em 35 meses de trabalho de campo etnográfico e aprendizagem em uma academia de boxe situada no gueto negro de Chicago, buscando explicar como os lutadores profissionais percebem e expressam o fato brutal de serem mercadorias vivas feitas de carne e sangue, e como eles se reconciliam praticamente com a ferocidade da exploração de uma maneira que lhes permite preservar um senso de integridade pessoal e finalidade moral. Desse modo, procura contribuir simultaneamente para a antropologia das culturas das classes trabalhadoras e para a etnossociologia do corpo, da economia e da moralidade1.
Uma noção que costuma ser usada por críticos do boxe profissional para explicar a persistência desse esporte é a de que os lutadores são ingênuos, crédulos, equivocados ou mal-informados a respeito da verdadeira natureza de sua ocupação — em suma, simples marionetes (ou bobos*)
* No original, “dupes