Os avatares do abuso do direito
Judith Martins-Costa. Livre Docente pela Universidade de São Paulo. Professora de
Direito Civil na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
“A ordem jurídica protege os interesses dos membros da comunidade, enquanto entre si se harmonizam e coexistem; isto é, protege-os enquanto são dignos de proteção e necessitados dela”.
(Pontes de Miranda)
I) Uma tradição de fragmentações. A) A construção do conteúdo. B) O encadeamento entre ilicitude civil, culpa e responsabilidade e as entorses na qualificação do exercício inadmissível. II) Uma perspectiva de sistematização. A) As transversalidades culturais do art. 187 do Código Civil. B) Para uma visão prospectiva do art. 187: a sistematização possibilitada pelo Princípio da Boa-Fé Objetiva.
Em meados da década de 20 do século passado, o empresário, político e homem público alemão Walther Rathenau, metaforizou o fenômeno da concomitante substituição do conteúdo das organizações humanas conquanto a manutenção da palavra ou termo que as designa na expressão “concha do marisco abandonada” 2. Numa concha de marisco que se encontra jogada na areia da praia, o primitivo habitante que lhe
1
Trabalho apresentado ao Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de
Janeiro (Rio de Janeiro, 21-23 de setembro de 2006). Registro meu agradecimento ao convite formulado pelo Professor Gustavo Tepedino. Também sou especialmente grata ao auxílio que me foi prestado pelo
Professor Doutor Antonio Pinto Monteiro que, para além de solver dúvidas acerca do Direito português na matéria, ofereceu-me a obra notável de João Baptista Machado citada ao longo do texto.
2
In verbis: “Denominei em outros escritos como substituição de conteúdo (Substitution des Grundes) o fenômeno pelo qual todas as organizações humanas com o passar do tempo podem ser atingidas: a organização contém o seu nome e características peculiares de sua