falas
Se em terra de cego, quem tem um olho é rei, tudo o que dissermos aos outros [cegos], será de total ou sem nenhum sentido. Porém poderemos entregar aos cegos aquilo que, de apenas um olho temos percebido e, como nos foi gratuito, ofereceremos o que de graça recebemos: um olho bom. Mas se a visão de um olho é uma visão parcial, não total, poderá ser também, em alguns casos, ser uma visão distorcida ou mentirosa.
Um olho bom pode ser o conhecimento de uma cultura sem o conhecimento da história. Pode ser a liturgia sem a essência. Pode ser a estrutura e a forma sem o conhecimento da vida que precede ambas. Pode ser o preceito sem o princípio. Pode ser o verbo sem a ação. Pode ser a teoria sem a prática. Pode ser a tradição sem a espontaneidade. Pode ser o culto sem o motivo. A festa sem o que celebrar. Pode ser o próprio homem sem a própria cruz. Pode ser uma velha aliança disfarçada de nova e o “Pai nosso” simples reza. Nesse sentido, tudo isso nos faz mentirosos.
Vamos supor que antes, quando ainda completamente cegos, nem isso nós tínhamos. Nos falavam tudo, porém nada fazia sentido. Com um olho bom, tudo passou a ter sentido, mas apenas por um lado; o lado do olho que recebeu a visão. Porém a visão completa tira da parcial o primeiro sentido. Pobre que não tem absolutamente nada, nada poderá ser-lhe tirado; mas pobre que tem alguma coisa, tudo lhe poderá ser arrancado. Enquanto totalmente cego, nada tinha a perder, mas agora, com uma vista, o medo tomou conta de mim… está bom assim; alcancei conforto que não tinha.
O homem contemporâneo, quando se tornou Igreja em Jesus Cristo, parece-me que um olho bom recebeu e gostou. Gostou tanto que outro olho bom seria demais. “Pra quê mais se já está bom assim?” Um segundo olho bom custaria o tudo