eu sou feminista
Sempre me causaram grande incómodo os depoimentos de mulheres que afirmam "eu cá não sou feminista porque nunca me senti discriminada". Reduzir a História a uma condição pessoal é um malabarismo que confunde as coisas. Martin Luther King não precisou de ser escravo para saber que os negros eram efetivamente discriminados e de assumir a luta contra essa discriminação como a causa da sua vida. O conhecimento da realidade obriga-nos a escolhas. Isso basta.
Mais incómodo me causam aquelas expressões tão triviais de homens que dizem: "Feminismo? Deve haver engano: isso é com elas." O feminismo não é coisa de mulheres. É coisa da democracia. São feministas - mulheres e homens - aquelas/es que olham para a sociedade e veem nela o apoucamento das mulheres por serem mulheres. E que diagnosticam nessa discriminação a presença de relações de poder antigas, culturalmente entranhadas, que aberta ou subtilmente reservam para as mulheres um lugar subalterno no terreno social.
Há quem ainda o faça à bruta - as 14 700 queixas de violência doméstica apresentadas à polícia só no primeiro semestre do ano passado atestam-no bem. Mas o tempo e a denúncia desses atavismos encarregaram-se de revestir a discriminação das mulheres de invólucros sofisticados. Hoje, mais do que justificar a discriminação, desqualifica-se o discurso que a denuncia. É o que se passa desde logo com a absolutização dos casos de sucesso ("ela tornou--se respeitada no local de trabalho, contra todos os preconceitos, estão a ver?" ou "discriminação das mulheres era dantes, agora 65% dos licenciados são mulheres"). O caminho feito nunca justifica a cegueira do caminho por andar. E se há hoje condições sociais e culturais em que a dignidade das mulheres é equacionada em termos diferentes dos que existiam há meio século, o mínimo que apetece dizer é que mal seria se assim não fosse. Mas isso não é, não pode ser, álibi para que não reconheçamos a persistência de