Descrição a cerca de uma psicologia intrapessoal
Não sei quem mora aqui. Não tenho idéia do tamanho. Só tenho medo. Muito medo. Medo de de repente, assim, num fim de tarde qualquer, eu morder alguma canela ou sair correndo de quatro. Não sei.
Medo de comer demais, dormir demais, cagar no meio da rua, latir. Morrer de repente. Do corpo não agüentar o tamanho da minha alma. Medo de alimentar demais o bicho, perder forças pra ele. Deixar que ele ganhe de mim, arrebente a coleira.
Não sei que bicho é. Não sei se é manso. Não sei. Só sei que evito tudo. Beber, fumar, amar, me drogar, sonhar, viajar, passar muito tempo longe de casa, perder o controle, vomitar, virar do avesso, olhar pra ele. Eu não posso perder o controle, entende? Não posso pois não sei o tamanho do meu bicho.
É tanta raiva, eu sei. Meu bicho perdeu a data da vacina. Um corpo 48, um pé 33 e uma mão menor que a do meu primo de dez anos. Isso é tudo o que eu tenho contra ele. Esse é o tamanho da jaula que arrumaram pra fera. Mas ele quase quebra, quase quebra a jaula o tempo todo. Ele quase bate nas pessoas, atropela os folgados, cospe nos sujos, arranha os safados, vomita nos podres, escalda os enganadores, afoga os que partiram sem que eu deixasse, dilacera os que deixaram de me amar, arregaça os posudos. Quase. É uma luta sobrenatural pra ser humana. Tão forte que quase não consigo. Quase não sou humana.
Como pouco, sinto pouco, nado raso, amo o superficial, bebo só as beiradas, belisco a vida. Tudo para me manter imaculada. Tudo para sentir o mínimo possível o mundano das coisas. Tudo para ser quase desumana de tanto negar a vida. Para negar minhas vontades de bicho. Para jamais me lembrar dele. Eu sempre fico com fome, eu sempre acordo antes do sono acabar, eu sempre paro antes do peito arrebentar, eu sempre sento antes da pressão cair, eu sempre tenho prazer antes de sentir prazer. Eu sempre vou até onde é seguro. Eu tenho medo do meu abismo e da soltura do meu bicho. O que ele pode fazer comigo? O que ele pode fazer