Clarice
Clarice Lispector tem a maestria de revelar as transformações dos sujeitos de modo profundo, denso, transcendente, epifânico. Suas obras colocam à mostra os grandes conflitos do ser humano, explorando com muita sutileza as regiões mais profundas e inexprimíveis da alma, aliando razão e sensibilidade por meio de uma linguagem extremamente poética.
A filha Zilda é um personagem manipulado pelo dever de realizar uma festa de aniversário para sua mãe, que completa oitenta e nove anos, arruma a casa, ocupa-se com os preparativos e convida os familiares para a comemoração. Nota-se que, no nível do parecer, a comemoração simula-se prazerosa, mas a manipulação de Zilda não se dá pelo querer-fazer, ou seja, realizar a festa de aniversário da mãe, mas sim pelo dever-fazer. Assim, no nível do ser, ao focalizar o ponto de vista de Zilda, o narrador revela-nos o quanto ela se sente revoltada por ter de arcar com essa tarefa solitariamente:
No lugar de uma comemoração prazerosa, nota-se que não só Zilda, mas todos os parentes, os familiares estão apenas cumprindo tarefas (todos também manipulados pelo dever). Um outro exemplo é a “nora de Olaria” que cumprimenta com cara fechada os da casa.
A velha senhora de Clarice Lispector, desperta a simpatia pela coragem e pelo olhar crítico que despeja sobre os sentimentos burocráticos de sua família, e ainda pelo modo como se contém até que, não cabendo mais em si, transforma todas as palavras que lhe entravam na mente numa grosseira cusparada, despertando, também por isso, e pelos sentimentos duros, e pela sua burocracia interior (ao fim do relato, tudo o que se pergunta é se haverá jantar...), a repulsa. Ou, pelo menos, provoca no leitor uma série de sentimentos ambíguos e incompatíveis entre si.
A riqueza do conto está justamente aí: ele não só não oferece,