Cadeira do dentista
Passei na vida por alturas difíceis em que era necessária alguma coragem, penso que me portei com dignidade e não fui cobarde até diante da morte, mas confesso que as cadeiras de dentista, incapazes de matar seja quem for, me apavoram.
A coisa no mundo de que tenho mais medo, a seguir ao de secar a fonte misteriosa e completamente fora do meu alcance de onde os livros vêm, são as cadeiras de dentista. Passei na vida por alturas difíceis em que era necessária alguma coragem, penso que me portei com dignidade e não fui cobarde até diante da morte, mas confesso que as cadeiras de dentista, incapazes de matar seja quem for a não ser de susto, me apavoram, rezando para que Santa Apolónia, padroeira de quem sofre da boca, se digne proteger-me. Mal o espelhinho
- Ora vamos lá ver me inspecciona as gengivas já estou com uma das pernas no ar em atitudes de bailarina de can-can, uma bailarina de babete ao pescoço como nos tempos, não assim tão recuados, em que me davam papa, o doutor surpreende-se
- Ainda nem lhe toquei e já está nesse estado e eu, reduzido a um trapo taquicárdico, a desfazer os dedos das mãos uns nos outros e a fazer figas com os dos pés
(podem não acreditar mas nessas alturas até faço figas com os dedos dos pés) cordeiro indefeso que a broca há-de furar desde o canino de cima à moleirinha, atravessando-me o cérebro com um blequendequer
(como escreveria mal em inglês escrevo assim) enlouquecido e feroz, destruindo a caixa das ideias, afectos e lembranças num ruído pavoroso, deixando-me a vida em estilhas e o futuro reduzido a uma cama onde solto, de tempos a tempos, monossílabos sem nexo. Houve uma altura da minha pobre existência em que um amigo, enfermeiro no hospital psiquiátrico onde trabalhávamos
(para mim não era trabalho, era aprender a viver) se dedicava a arranjos de cáries na marquise. Mal me doía um dente telefonava-lhe, a maior parte das vezes à noite, a mulher