Brasileiro Cidad O
José Murilo de Carvalho
No Brasil, circunstâncias históricas tornaram mais lento o processo de formação da cidadania e fizeram com que até hoje prevalecesse a desconfiança entre os cidadãos e destes frente ao governo, situação que precisa mudar junto com o fortalecimento da cidadania, para garantir nosso próprio futuro como nação
Começo contando um pequeno episódio de que fui parte. Pequenas histórias do cotidiano são, às vezes, mais esclarecedoras da cultura de um povo do que abstratas especulações acadêmicas. Em sua espontaneidade, podem jogar luz inesperada sobre aspectos importantes dos valores coletivos, inclusive no campo que nos deve ocupar aqui hoje – o da construção da nossa cidadania. Dirigia-me a um sítio localizado a 60 quilômetros do Rio de Janeiro, quando fui interrompido por um grupo de pessoas que me pediram para levar uma senhora ao médico. Atendi e, no carro, indaguei da razão do pedido. A casa da mulher tinha sido invadida por policiais militares. Ela sofreu um choque e passou mal. De regresso do posto médico, onde fiquei sabendo que o trauma poderia ter sido sério, detive-me no posto policial para reclamar. Apenas me viram, os policiais se dirigiram a mim com toda gentileza, dizendo imediatamente: “Pois não, doutor, em que podemos servi-lo?”
Expliquei o caso, argumentei que poderiam ter causado a morte da pobre velha. O sargento não se abalou. Admitiu terem sido ele e um colega os autores do feito, mas negou a acusação: “Não invadi, doutor, não arrombei; foi apenas o peso do meu corpo que forçou a porta do casebre”. Continuou explicando que a mulher se declarara crente e fora bem tratada. Havia uma acusação de roubo de galinha – o clássico roubo de galinha! – contra os filhos da mulher, daí a razão da investigação policial. Completou afirmando que o local era ponto de macumba e talvez de tráfico de drogas, o que justificava plenamente a ação da polícia.
Essa é a pequena história. O que ela nos diz sobre a cidadania em nosso