O quinze raquel de queiroz
Rachel de Queiroz
Edição integral
Copyright 1937
1.
Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José,
Dona Inácia concluiu:
”Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo da Virgem Maria, e alcançai o que rogamos.
Amém.” Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia as tranças sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a:
- E isto chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta novena...
Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
- Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril.
Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia.
- Você não vem tomar o seu café de leite, Conceição? A moça ultimou a trança, levantou-se e pôs-se a cear, calada, abstraída.
A velha ainda falou em alguma coisa, bebeu um gole de café e foi fumar no quarto.
A bênção, Mãe Nácia! - E Conceição, com o farol de querosene pendendo do braço, passou diante do quarto da avó e entrou no seu, ao fim do corredor.
Colocou a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama,
- a velha cama de casal da fazenda - e pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. E ao fechá-la, porque soprava um vento frio que lhe arrepiava os braços, ia dizendo:
- Eh! a lua limpa, sem lagoa! Chove não!...
Foi à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns quatro ou cinco, que pôs na mesa, junto ao farol. Aqueles livros - uns cem, no máximo - eram velhos companheiros que ela escolhia ao acaso, para lhes saborear um pedaço aqui, outro além, no decorrer da noite. Deitou-se vestida, desapertando a roupa para estar à vontade. Pegou no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de travesseiros ao canto da cama, perto da luz, e, fincando o cotovelo neles, abriu à toa o volume.
Era uma velha história polaca, um romance de Sienkiewicz, contando casos de heroísmos,