O corpo (a via crucis do corpo) – clarice lispector
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Xavier era um homem truculento e sangüíneo. Muito forte esse homem. Adorava tangos. Foi ver O último tango em Paris e excitou-se terrivelmente. Não compreendeu o filme: achava que se tratava de filme de sexo. Não descobriu que aquela era a história de um homem desesperado. Na noite em que viu O último tango em Paris foram os três para cama: Xavier, Carmem e Beatriz. Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres.
Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra. Beatriz comia que não era vida: era gorda e enxundiosa. Já Carmem era alta e magra. A noite do último tango em Paris foi memorável para os três. De madrugada estavam exaustos. Mas Carmem se levantou de manhã, preparou um lautíssimo desjejum — com gordas colheres de grosso creme de leite — e levou-o para Beatriz e Xavier. Estava estremunhada. Precisou tomar um banho de chuveiro gelado para se pôr em forma de novo. Nesse dia — domingo — almoçaram às três horas da tarde. Quem cozinhou foi Beatriz, a gorda. Xavier bebeu vinho francês. E comeu sozinho um frango inteiro. As duas comeram o outro frango. Os frangos eram recheados de farofa de passas e ameixas, tudo úmido e bom. Às seis horas da tarde foram os três para a igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel. E de noite ficaram em casa vendo televisão e comendo. Nessa noite não aconteceu nada: os três estavam muito cansados.
E assim era, dia após dia.
Xavier trabalhava muito para sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às vezes enganava a ambas com uma prostituta ótima. Mas nada contava em casa pois não era doido. Passavam-se dias, meses, anos. Ninguém morria. Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem tinha trinta e nove. E Beatriz já completara os cinqüenta. A vida lhes era boa. Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo. E comprar perfume. Carmem era mais elegante.