A burocracia vista por josé saramago
A literatura é o espelho da vida real e vice-versa. Às vezes, para compreender um fenômeno ou uma situação, a leitura de um romance pode esclarecer melhor do que uma explicação teórica sobre o fato. Assim, transcrevemos abaixo um texto do escritor José Saramago, prêmio Nobel de literatura, que retrata uma situação burocrática melhor do que qualquer relato real.
“Por cima da moldura da porta há uma chapa metálica comprida e estreita, revestida de esmalte. Sobre um fundo branco, as letras negras dizem Conservatória Geral do Registro Civil. O esmalte está rachado e esboicelado em alguns pontos. A porta é antiga, a última camada de pintura castanha está a descascar-se, os veios da madeira, à vista, lembram uma pele estriada. Há cinco janelas na fachada. Mal se cruza o limiar, sente-se o cheiro de papel velho. É certo que não passa um dia sem que entrem papéis novos na Conservatória, dos indivíduos de sexo masculino e de sexo feminino que lá fora vão nascendo, mas o cheiro nunca chega a mudar, em primeiro lugar porque o destino de todo papel novo, logo à saída da fábrica, é começar a envelhecer, em segundo lugar porque, mais habitualmente no papel velho, mas muitas vezes no novo, não passa um dia sem que se escrevam causas de falecimentos e respectivos locais e datas, cada um contribuindo com seus cheiros próprios, nem sempre ofensivos das mucosas olfativas, como o demonstram certos eflúvios aromáticos que de vez em quando, subtilmente, perpassam na atmosfera da Conservatória Geral e que os narizes mais finos identificam como um perfume composto metade rosa e metade crisântemo. “Logo depois da porta aparece um alto guarda-vento envidraçado de dois batentes por onde se acede à enorme sala retangular onde os funcionários trabalham, separados do público por um balcão comprido que une as duas paredes laterais, com exceção, em uma das extremidades, de aba móvel que permite a passagem para o interior. A disposição dos lugares na