Sobre Deus.
“[...] Como compreender a criação do mundo a partir do nada, ex-nihilo, conforme esta dito no Gênesis? Se Deus é tudo, a plenitude do ser, como poderia acrescentar a si mesmo a criação do universo, dele permanecendo distinto? Se Deus não se confunde com o universo, deixa de ser a plenitude do ser, porque lhe ficaria faltando, para ser pleno, o universo por ele criado. Porque o Deus onipotente teria criado o mundo, que não inclui apenas a beleza e a ordem, mas também a hediondez e a desordem? Não apenas o bem e a justiça, mas também o mal e a injustiça? Como conciliar a onisciência divina com a liberdade humana? Como compreender que um ser situado fora do tempo, pois Deus é eterno por definição, possa prever, por antecipação, o que desenrola no tempo? Se Deus não prevê, mas vê, simultaneamente, todo o desenrolar do tempo, não há tempo, mas apenas espaço, simultaneidade e não sucessão. Se tudo prevê, ou vê, nos devassa em nossa mais profunda intimidade, na raiz mesma de que brotam nossos atos livres.
Como conciliar a infinita bondade de Deus, um dos seus atributos, com as penas eternas do inferno? Que proporção poderá haver entre os pecados cometidos pelo pobre e miserável ser humano, posto no mundo à sua revelia, sem consulta previa, e nenhuma responsabilidade pela sua condição humana, que proporção poderá haver entre seus erros, pecados e culpas, por mais graves que sejam, cometidos no tempo efêmero, que nada é comparado à eternidade, e as penas eternas do inferno, sem remissão, sem apelação? O purgatório ainda seria compatível com a bondade divina, mas o inferno é rigorosamente inconciliável não só com essa bondade, mas com a justiça, outro dos atributos de Deus. Pois como admitir e adorar um Deus injusto, mais injusto do que os próprios homens? [...]”
Texto extraído de:
CORBISIER, Roland; Introdução à Filosofia. Tomo II – Parte Terceira – Cartesianismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1994