Processo n.º 2274/2002. NUIPC 1086/07.2 TQSNT
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Processo n.º 2274/2002. NUIPC 1086/07.2 TQSNT Quem não se sentir ofendido com a ofensa feita a outros homens, quem não sentir na face a queimadura da bofetada dada noutra face, seja qual for a sua cor, não é digno de ser homem
José Martí
Augusta Duarte Martinho completava 96 anos hoje, sábado, se estivesse viva; foi vista pela última vez no Verão de 2002. O seu cadáver (e o do cãozito na varanda à espera dela até também morrer e de vários pássaros) foi encontrado atrás da porta da cozinha, de barriga para baixo, num prédio cinzento da uma localidade portuguesa da freguesia de Rio de Mouro no concelho de Sintra, entregue ao mais insidioso retiro e esquecimento. Essencialmente só.
Durante mais de oito anos, Augusta não foi vista por ninguém, não levantou os vales da pensão da Segurança Social, não pagou as despesas de condomínio, não cumpriu as obrigações ficais. Por não ter honrado estes compromissos, o Estado penhorou a casa, vendendo-a em leilão. A nova proprietária adquiriu a casa e o cadáver, que jazia na cozinha. Este panorama mostra o avesso, o desproporcionado, o absurdo e o ilícito. A mesquinhez.
Estranho mundo este. A história desta reformada educadora de infância ou professora – também ninguém sabe ao certo – é toda ela uma tétrica parábola sobre a cidade de cimento e do vazio, dos homens e das mulheres, que vimos construindo na aparência de civilização. Num país reduzido a números e estatísticas ninguém se intriga face a nove anos de ausência. A colectividade mais preocupada em comentar os reality shows televisivos, que exploram a pura e suprema banalização da intimidade e louvam cretinos esquece quem caminha sozinho, abraçado a um inferno chamado solidão interior, numa realidade sem show. Como pergunta chocado o escritor e ensaísta Eduardo Pitta Ninguém estranhou que a luz da cozinha tivesse estado acesa durante oito meses? A Direcção-Geral dos Impostos põe casas a leilão sem contacto prévio com o contribuinte? Um caso