poema
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa, mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação, sem propósito, sem nexo, sem consequência, sempre, sempre, sempre, esta angústia do espírito por coisa nenhuma, na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…
Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante, galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestararm, ai de mim!, eu próprio sou! À esquerda o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade, é agora uma coisa onde estou fechado, que só posso conduzir se nele estiver fechado, que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha no pavimento térreo, sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga, e ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?