Paris nem sempre é uma festa
SETEMBRO, 1899, ILLE DE LA CITÉ, PARIS.
A Pont-Neuf parecia ligar o passado ao nada, naquela hora baldia.
Uma violenta tempestade acabara de se dissipar, deixando ainda molhados o outono e as pedras irregulares das ruas desertas. Apenas um cego e seu cão poderiam observa-la passar com passos vacilantes, surgindo como uma canção bêbada por entre a insistente neblina, vindo da direção da Place Dauphine. Seus cabelos eram de um amarelo tão pálido quanto o por-de-sol que antecedera aquela noite que acabava de amanhecer.
O dia surgia cinza, servindo de moldura para os diversos tons de marrom que habitavam as árvores gotejantes. Aquí e alí uma desavisada gardênia pincelava de carmim a paisagem inquietante.
Ela era bela e triste como a hora, o dia, a estação. Muito pálida, mostrava nos olhos um azul cintilado por lágrimas recém enxugadas. Um pesado casaco negro escondia suas vestes e seu corpo de curvas suaves e junto com apenas um chapéu vermelho parecia te-la protegido da chuva que ainda caía fina sobre a cidade. Trazia nas mãos um envelope verde, talvez a única mancha verde em toda a pintura que se desenhava àqueles únicos olhos próximos, ausentes um de luzes e outro de cores. Caminhava lentamente, parando a cada passo para olhar em volta, como se tentasse reter na memória a paisagem familiar.
Uma geometria caprichosa registrava a intimidade paralela dos pilares, a lenta parábola da pesada estrutura por sobre o Sena, o equilíbrio perpendicular dos lampiões, formando todo um conjunto harmonico, embora cada elemento estivesse em busca dos seus precários pontos de fuga.
Imaginários ou não, eles forneciam o equilíbrio da composição.
Talvez faltasse a ela um ponto de fuga, tão incerta era a sua trajetória pela vida, pela noite, pela ponte. Diminuiu ainda mais o ritmo dos seus passos, ao passar pelo cego, que sem vê-la, mas atento ao eco dos passos no espaço, estendeu num gesto mecanico a mão esquerda, já que lhe faltava a direita;