os ossuários da purificação étnica
JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Na introdução de seu grande livro "As Palavras e as Coisas", Michel Foucault evocava a classificação burlesca de "uma certa enciclopédia chinesa" citada por Jorge
Luis Borges, na qual os animais são divididos em "pertencentes ao imperador",
"embalsamados", "leitões", "que se agitam como loucos", "que acabam de quebrar a bilha" e outras categorias do mesmo gênero. O que nos chama a atenção, dizia ele, nessas listas que misturam todas as categorias do Mesmo e do Outro, é a pura e simples impossibilidade de pensar isso.
Aparentemente, a razão ocidental fez progressos desde então. E as cabeças pensantes das grandes potências políticas apadrinharam recentemente um acordo de paz para a ex-Iugoslávia, reconhecendo de fato a partilha da Bósnia-Herzegovina entre três etnias: a etnia sérvia, a etnia croata e a etnia muçulmana. A lista, sem dúvida, é menos rica em imaginação que a inventada por Borges, mas de forma alguma menos aberrante.
Dentro de qual gênero comum poderia um filósofo ensinar-nos a distinguir entre a espécie croata e a espécie muçulmana? Qual etnólogo nos diria, por acaso, quais são os traços que distinguem uma "etnia muçulmana"? Poderíamos imaginar um bom número de variações sobre tal modelo. Por exemplo, uma nação americana recortada em etnia cristã, etnia feminina, etnia atéia e etnia imigrante. Alguém dirá que a matéria não se presta a gracejos.
Disso
tenho plena consciência.
Hegel dizia que as grandes tragédias da história do mundo são encenadas pela segunda vez como comédias. Aqui, ao contrário, é a farsa que se torna tragédia.
A guerra bósnia é uma manobra militar que, além de destroçar um país, permitiu impor como "dado objetivo" da fria razão uma maneira de utilizar as categorias do Mesmo e do Outro que faz vacilar os próprios fundamentos de nossa lógica.
Se a descrevermos em termos clássicos, a guerra da Bósnia foi uma guerra de anexação