Morangos mofados
Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo. Clarice Lispector: A hora da estrela
Achava belo, a essa época, ouvir um poeta dizer que escrevia pela mesma razão por que uma árvore dá frutos. Só bem mais tarde viera a descobrir ser um embuste aquela afetação: que o homem, por força, distinguia-se das árvores, e tinha de saber a razão de seus frutos, cabendo-lhe escolher os que haveria de dar, além de investigar a quem se destinavam, nem sempre oferecendo-os maduros, e sim podres, e até envenenados. Osman Lins: Guerra sem testemunhas
HOJE NÃO É DIA DE ROCK Heloísa Buarque de Holanda
Uma carta de Caio Fernando Abreu conta o processo. Quando penso que havia fechado meu expediente sobre o tema de criação de contracultura! desbunde! balanços! críticas! autocríticas e aponto o lápis para trabalhar “novos capítulos de nossa história cultural”, eis que cai, em minha mesa, um livro irrecusável: Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu. Disfarço a curiosidade, adio a leitura, rendo-me afinal à tentação. Não sei bem por que, lembro-me do Teatro Ipanema, casa lotada aplaudindo freneticamente a peça de José Vicente, Hoje é dia de rock, na primavera-verão de 1971. De certa forma, Morangos mofados fala de uma história que se configurava oficialmente, no Rio, naquele teatro e naquele verão. A peça - rito de passagem da geração desbunde - falava da grande mudança para a Fronteira, de um incontido desejo de sair, de se desligar de um mundo “condenado”. Encenava, em meio a um estonteante trabalho visual e sonoro que traduzia plasticamente a liturgia psicodélica da época, um vôo em direção às margens, no melhor estilo da utopia drop-out. “Quem nasceu para voar, voe no rumo do céu. Quem nasceu para cantar, cante. Teus pássaros viajam voando no espaço estreito da América, contra sertões, procurando ar, cor, luz, flor, pão. Pássaros viajam ao redor da Máquina, contra a Máquina, antes da Máquina e depois” - sentenciava Inca, a vidente, em