Freud E A Cocaina
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L AT I N OA M E R I C A N A
DE
PSICOPATOLOGIA
F U N D A M E N T A L
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 3, p. 420-436, setembro 2008
O episódio de Freud com a cocaína: o médico e o monstro*
Decio Gurfinkel
420
O objetivo do trabalho é uma avaliação dos possíveis “restos” que o episódio de Freud com a cocaína tenha deixado para a criação da psicanálise, realizada através do reexame retrospectivo, crítico e analítico desse episódio. O resultado desta avaliação pôs em destaque quatro elementos: o surgimento de um Freud psiquiatra e farmacologista e o progressivo abandono desta via; o surgimento da adicção como objeto de investigação; o modelo da autoadministração como método de pesquisa; e a crença e abandono subseqüente de um projeto de “cura mágica”.
Palavras-chave: Freud, cocaína, história da psicanálise, adicções
* Este artigo é parte de uma pesquisa de Pós-Doutorado realizada no Programa de Estudos PósGraduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, com apoio da FAPESP (processo n. 05/58749-0).
ARTIGOS
Após ter criado a psicanálise, Freud nunca dedicou um ensaio ao estudo das adicções; como sabemos, o primeiro trabalho inteiramente dedicado ao tema foi de Abraham (1908). Antes disto, no entanto, quando era um jovem médico, ele escreveu uma longa monografia e alguns pequenos artigos sobre a cocaína, tendo estado bastante envolvido com a droga ao longo de alguns anos. Acompanhando a sua obra posterior, notamos sinais seguros de que a adicção e as drogas não escaparam à sua atenção e, mais do que isto: podemos ler, nas entrelinhas, elementos essenciais de uma concepção psicanalítica sobre as adicções (cf. Gurfinkel, 1996). Ainda assim, a ausência de um trabalho de Freud sobre o tema não deixa de intrigar o leitor atento. Se ele teve a preocupação de cobrir ao máximo o campo da psicopatologia e de expandir suas reflexões para os mais diversos campos, por que esta lacuna?
A pergunta dá margem a especulações. Uma das possíveis