Fiodor Dostoievski Contos
Contos
“Os Mais Brilhantes Contos de Dostoiewski”
Tradução de Ruth Guimarães.
Edições de Ouro
1970
O Subsolo∗
I
EU SOU um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença do fígado. Aliás, não compreendo absolutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal.
Não me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os médicos e a medicina. Demais, sou extremamente supersticioso, o bastante, em todo o caso, para respeitar a medicina (sou bastante instruído: poderia então não ser supersticioso, mas sou). Não! Se não me trato, é pura maldade de minha parte. Não sabereis certamente compreender. Pois bem! Eu compreendo. Não poderei evidentemente explicar-vos em que errei, agindo tão malvadamente: sei muito bem que não são os médicos que eu incomodo, recusando-me a tratar-me. Não engano senão a mim mesmo; reconheço-o melhor que ninguém. Entretanto, é mesmo por malvadez que não me trato. Sofro do fígado! Tanto melhor! E tanto melhor ainda se o mal piora.
Há muito tempo já que eu vivo assim: uns vinte anos, pouco mais ou menos. Fui funcionário, pedi demissão. Fui um funcionário muito ruim. Era grosseiro e tinha prazer em sê-lo. Podia bem me compensar desta maneira, pois que eu não aceitava gorjetas (esta brincadeira não tem graça; mas não a suprimirei. Escrevi-a crendo que teria espírito; não a apagarei, entretanto, expressamente; porque vejo que queria me dar ares de importância). Quando os solicitantes em busca de informações se aproximavam da mesa diante da qual eu estava sentado, eu rangia os dentes; sentia uma volúpia indizível, quando conseguia causar-lhes algum aborrecimento. Conseguia-o quase sempre. Eram geralmente pessoas tímidas, acanhadas. Solicitantes, pois quê! Mas havia às vezes presumidos entre eles, petulantes, e eu detestava particularmente certo oficial. Ele não entendia de submissão e arrastava o grande sabre, de um modo detestável. Durante um ano e meio movi-lhe guerra, por